quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Mitos como instrumentos de insight

O primeiro traço de união importante que vi entre os padrões mitológicos e a psicologia das mulheres foi fornecido por Erich Neumann. Ele é analista junguiano. Em seu livro Amor and Psyche, Neumann usava a mitologia como meio de descrever a psicologia feminina. Percebi que a combinação de Neumann entre mito e comentário psicológico era um poderoso instrumento de insight.

No mito grego de Amor e Psique, por exemplo, a primeira tarefa de Psique era a de separar um enorme e desordenado monte de sementes, colocando cada espécie de grão num montículo separado. Sua reação inicial a esta tarefa, bem como às três tarefas seguintes, foi de desespero. Percebi que o mito se encaixava a certo número de minhas pacientes mulheres que estavam se esforçando com várias tarefas importantes. Uma era estudante graduada que sentiu-se incapacitada diante de uma dissertação, não sabendo como poderia organizar o amontoado de matéria. Uma outra era uma jovem mãe oprimida. Ela tinha que calcular o que fizera de seu tempo, selecionar prioridades e encontrar um modo para continuar a pintar. Cada mulher era chamada a fazer mais do que era capaz, como Psique, porém num setor que ela mesma escolhera. Ambas reagiram ao mito que espelhou a situação delas, proporcionou-lhes insight para o modo como elas reagiam a novas exigências, e deu um sentido amplo a seus esforços. Quando a mulher sente que há uma dimensão mítica para alguma coisa que ela esteja empreendendo, o conhecimento toca e inspira profundos centros criativos nela. Os mitos evocam sentimento e imaginação e tocam temas que são parte da herança coletiva humana. Os mitos gregos- e todos os outros contos de fada e mitos que ainda são contados há milhares de anos - permanecem correntes e pessoalmente relevantes, porque há uma ressonância de verdade neles sobre experiências humanas compartilhadas. Quando um mito é interpretado, intelectual ou intuitivamente, isso pode resultar em alcance novo de compreensão. Um mito é como um sonho do qual nos lembramos, até mesmo quando não é compreendido, porque ele é simbolicamente importante.

De acordo com o mitologista Joseph Campbell, "sonho é mito personalizado; mito é sonho despersonalizado". Não é de admirar que os mitos invariavelmente pareçam algo vagamente familiar. Quando um sonho é corretamente interpretado, a pessoa que sonha tem um lampejo de insight - expresso por um "Aha!" - pois a situação à qual o sonho se refere torna-se clara. A pessoa que sonha intuitivamente agarra e conserva o conhecimento. Quando, ao interpretar um mito, alguém deixa escapar um "Aha!", o mito determinado está simbolicamente chamando a atenção para alguma coisa que é importante para ele ou ela. A pessoa agora compreende alguma coisa e vê através da verdade. Este nível mais profundo de compreensão tem ocorrido em auditórios para os quais eu tenho falado. Isso acontece quando conto os mitos e depois interpreto seus significados. E um modo de aprender que lembra algo no qual a teoria sobre a psicologia feminina torna-se autoconhecimento ou conhecimento sobre mulheres expressivas com quem os homens e as mulheres da platéia estão relacionados.

Comecei a usar a mitologia em seminários sobre a psicologia das mulheres quase no fim dos anos 60 e começo dos anos 70. Usei-a primeiramente no centro médico da Universidade da Califórnia, no Instituto Psiquiátrico Langley Porter; depois em Santa Cruz, na Universidade da Califórnia e no Instituto C. G. Jung, em São Francisco. Na década e meia seguinte, a palestra deu-me mais oportunidade para desenvolver meus pensamentos e obter respostas dos auditórios nos seguintes lugares: Seattle, Minneapolis, Denver, cansas City, Houston, Portland, Fort Wayne, Washington D.C., Toronto, New York e a área da baía de São Francisco, onde moro. Onde quer que eu palestrasse, a resposta era a mesma: quando eu usava mitos em combinação com material clínico, experiências pessoais e insights do movimento feminista, o resultado era uma nova e mais profunda compreensão. Eu tinha iniciado com o mito de Psique, um mito que falava para mulheres que enfatizavam em primeiro lugar os relacionamentos. Depois falei de um segundo mito, cujo significado eu tinha desenvolvido. Esse mito descrevia as mulheres que se sentiam desafiadas em vez de desarmadas quando existiam obstáculos a serem superados ou tarefas a serem dominadas, e que, conseqüentemente, poderiam se desempenhar melhor na escola e fora, no mundo. A heroína mitológica era Atalanta, mensageira e caçadora que foi bem sucedida em ambos os papéis, vencendo os homens que tentavam vencê-la. Ela era uma bela mulher que fora comparada com Ártemis, deusa grega da caça e da lua. Esse modo de ensinar naturalmente incitava perguntas sobre outras deusas, e eu comecei a ler e a querer saber sobre o que elas representavam. Comecei a experimentar meus próprios "Aha!" como reação. Por exemplo, certa mulher ciumenta e vingativa entrou em meu consultório, e reconheci nela a raivosa e humilhada Hera, deusa do casamento e esposa de Zeus. O flerte de seu cônjuge provocou a deusa, levando-a a repetidos esforços de busca e destruição "da outra". Esta paciente era uma mulher que tinha acabado de descobrir que seu marido estava tendo um "caso". Tornou-se então obcecada com a outra mulher. Tinha fantasias vingativas, investigava os- atos e caminhos da outra. Tanto tentou pegá-los em flagrante que sentiu-se enlouquecer. Como típico de Hera, sua raiva não se voltava para o marido, que mentira para ela ou lhe fora infiel. Foi muito útil para minha paciente ver que a infidelidade de seu marido tinha uma resposta ao modo de Hera. Agora compreendia por que se sentia tão tomada pela raiva e como isso era destrutivo para ela. Pôde ver que precisava confrontar seu marido e o comportamento dele. Precisava encarar os problemas conjugais deles, mais do que tomar atitudes vingativas características de Hera. Então uma colega, sem que se esperasse, manifestou-se livremente contra a Emenda de Igualdade de Direitos, que eu estava defendendo. Por entre a raiva e a dor que senti, repentinamente deixei escapar um "Aha!" pela situação. Era, em nossas mentes, uma discordância de tipos baseados nas deusas. No momento, quanto a esse assunto, eu estava agindo e sentindo como Ártemis, arquétipo da Grande Irmã, protetora das mulheres. Minha antagonista, ao contrário, era como Atenas, a filha que nascera saltando das meninges de Zeus. Ela foi a deusa protetora dos heróis, defensora dos patriarcas, muitíssimo "filha do pai". Numa outra ocasião eu lia sobre o seqüestro de Patty Hearst. Compreendi que o mito de Perséfone, a donzela raptada, violentada e prisioneira de Hades, soberano do inferno, estava sendo completamente esgotado, desta vez nas manchetes dos jornais. Na época Hearst era estudante da Universidade da Califórnia. Era uma filha protegida de dois modernos e muito ricos deuses olímpicos, ela foi raptada e levada ao inferno pelo chefe do "Symbionese Liberation Army" e, fechada num cubículo escuro, foi repetidamente violentada.

Bem cedo eu estava percebendo que existem deusas em cada mulher. Descobri que o fato de conhecer qual deusa se fazia presente aprofundava minha compreensão dos acontecimentos mais dramáticos. Por exemplo: qual deusa estaria mostrando sua influência quando a mulher prepara refeições e faz o serviço doméstico?

Concluí que era um simples teste: quando um esposo se ausenta por uma semana, como é que a sua mulher prepara uma refeição para si própria, e o que acontece no que diz respeito à arrumação da casa? Quando a mulher influenciada por Hera ou por Afrodite fica sem companhia, isso pode ser comparado a uma triste e sombria ocorrência. Um pouco de mortadela talvez lhe baste. Qualquer coisa que esteja na geladeira ou no armário é suficientemente bom para ela quando está só, em marcante contraste com as bem cuidadas ou boas refeições que ela prepara quando seu marido está no lar. Ela prepara as refeições para ele. Faz o que ele gosta, é claro, mais do que aquilo que ela prefere. Isso porque ela é uma boa mulher que proporciona boas refeições (Hera), é motivada por sua natureza maternal a tomar conta dele (Deméter), faz o que agrada a ele (Perséfone), ou procura ser atraente para ele (Afrodite). Mas se a deusa que a influencia é Héstia, a mulher arrumará a mesa e proporcionará a si própria uma verdadeira refeição quando estiver só. E a casa permanecerá na costumeira boa ordem. Se as outras deusas tomarem para si o encargo dos assuntos domésticos é mais provável que eles sejam negligenciados até pouco antes da volta do marido. A mulher tipo Héstia trará flores para si própria, flores que nunca serão vistas pelo homem ausente. Ela deixará seu apartamento bem arrumado por causa dela mesma, e não por causa de alguém mais. E esse lugar, seu apartamento ou casa, será sempre considerado lar. A seguir veio a pergunta: "Os outros considerariam o caminho de se conhecer a psicologia das mulheres através de mitos um caminho útil e proveitoso?" A resposta veio quando eu palestrava sobre As deusas e a mulher. As ouvintes despertaram, intrigadas, e houve cochichos excitados pelo fato de se usar a mitologia como ferramenta de insigth. Este era um modo de se conhecer as mulheres, um caminho que estava persuadindo emocionalmente. Enquanto eu contava esses mitos, as pessoas viam, ouviam e sentiam; conforme eu os interpretava, as pessoas reagiam com um "aha!" Ambos, homens e mulheres, compreenderam o significado dos mitos como verdade pessoal, verificando alguma coisa que eles já sabiam e da qual eles estavam agora se tornando conscientes.

Também falei em encontros de organizações profissionais e discuti minhas idéias com psiquiatras e psicólogos. Partes deste livro foram primeiramente desenvolvidas como apresentação para as seguintes instituições: Associação Internacional de Psicologia Analítica, Academia Americana de Psicanálise, Associação Americana de Psiquiatria, Instituto Feminino de Associação Americana de Ortopsiquiatria e Associação de Psicologia Transpessoal. Minhas colegas acharam essa abordagem proveitosa e apreciaram o insight o padrão de individualidade e sintomas psiquiátricos que um conhecimento das "deusas" pode proporcionar. Para a maior parte de minhas colegas esta era a primeira exposição que tinham ouvido de uma analista junguiana sobre psicologia das mulheres. Somente minhas colegas junguianas estavam cientes de que eu estava e estou progredindo em minhas idéias sobre psicologia feminina, que diferem de alguns conceitos de Jung, tanto quanto estavam cientes de que estou integrando as perspectivas feministas com a psicologia arquetípica. Embora este livro tenha sido escrito para um público comum, o leitor junguiano especialista deverá notar o seguinte: a psicologia das mulheres, baseada nos arquétipos femininos, desafia a aplicabilidade geral da teoria junguiana de anima-animus (ver capítulo 3, "As deusas virgens"). Muitos escritores junguianos têm escrito sobre deuses e deusas gregos como figuras arquetípicas. Fico-lhes agradecida por contribuírem com seu conhecimento e insights, e cito o trabalho deles. Contudo, ao selecionar sete deusas gregas e categorizá-las em três grupos específicos, de acordo com o modo como elas funcionam psicologicamente, criei uma nova tipologia, e também um meio de compreender os conflitos intrapsíquicos. Dentro desta tipologia, acrecentei o conceito de consciência de Afrodite como terceiro método para a consciência enfocada e a percepção difusa, que já foram descritas na teoria junguiana.

Dois novos conceitos psicológicos adicionais são introduzidos, mas não aperfeiçoados, em primeiro lugar, as deusas proporcionam uma explicação para as incompatibilidades entre o comportamento das mulheres e a teoria dos tipos psicológicos de Jung. De acordo com esses tipos supõe-se que uma pessoa seja extrovertida ou introvertida na atitude; use sentimento ou razão como modo de avaliação; e perceba através da intuição ou sensação (através dos cinco sentidos). Além do mais, supõe-se que uma dessas quatro funções (pensamento, sentimento, intuição, sensação) seja mais conscientemente desenvolvida e confiável; seja qual ela for, supõe-se que a outra metade do par seja a menos segura ou menos consciente. As exceções do modelo de Jung "ou/ou, e mais desenvolvido/menos consciente", têm sido descritas pelas psicólogas junguianas June Singer e Mary Loomis.

Acredito que os arquétipos referentes às deusas proporcionam uma explicação para as exceções quanto às mulheres. Por exemplo, conforme a mulher "muda de conduta" e vai de uma faceta a outra de si própria, ela pode mudar de um padrão para outro de deusa: em um ambiente, por exemplo, ela é uma Atenas que presta atenção aos detalhes; em outra situação ela é uma Héstia introvertida, protetora da lareira, para quem "as águas silenciosas são profundas". Essa mudança explica a dificuldade de se determinar o tipo dela segundo Jung, pois a mulher tem muitas facetas. Ela pode estar muito conscientizada dos detalhes estéticos por influências de Afrodite) e não notar, por exemplo, que o fogão ainda está aceso, ou que o indicador do nível de gasolina registra quase vazio (detalhes que Atenas não perderia). A deusa predominante explica como uma função (neste caso a sensação) pode ser de modo paradoxal ao mesmo tempo altamente desenvolvida e inconsciente. Em segundo lugar, a partir da observação clínica concluí que o poder de um arquétipo representado por uma deusa (dominando o "ego" de uma mulher e causando sintomas psiquiátricos) compara-se com o poder atribuído a essa deusa historicamente – diminuindo influência da Grande Deusa da velha Europa, através de estágios, para as deusas gregas, que eram deusas filhas ou jovens. Embora este livro desenvolva a teoria e proporcione informações úteis ao terapeuta, ele é escrito para qualquer pessoa que queira entender melhor as mulheres principalmente aquelas mais íntimas, mais queridas, ou mais mistificadas para eles - e para as mulheres que queiram descobrir as deusas existentes no interior de si mesmas.


Rainha Mab - Amooo


*Trecho retirado do livro As Deusas e a Mulher - De Jean Shinoda Bolen


Que possamos nos reconhecer nas Deusas e assim trabalhar nossos pontos fracos e fortalecer-nos em nossas qualidades...
Um cheiro em todas vocês... )0( Sianna Mab)0(


2 comentários:

([säm]) disse...

*leu tudo* =O!

ta ai uma faculdade que eu gostaria de fazer um dia....psicologia =)

acho muito interessante a idéia de identificação com um arquétipo da deusa...como forma de se autoconhecer...e se compreender.

preciso aprender a ser mais Héstia em casa........xDD

Beijo!

Ana Paula Andrade disse...

Oi minha flor, grata pela visitinha, seu blog também é ótimo. Adoro esse livro - As Deusas e a Mulher - fala muito de mim guria!! rsrsrs de todas nós!
Te aguardo no Rede Matríztica, te enviei convite.
Beijão
Ana Andrade