quarta-feira, 31 de março de 2010

Safo... a Poetisa... Homossexual?

Longe de esclarecer seu mistério, o tempo tornou Safo símbolo da homossexualidade feminina. Um símbolo tão difícil de esquadrinhar quanto a verdadeira causa que levou Anacreonte a afirmar maliciosamente que o nome da ilha de Lesbos, onde ela nasceu e viveu a maior parte de sua vida, conotava a paixão mútua das mulheres que ali se congregavam sob a tutela de uma dama da alta linhagem, a fim de adquirir as bases de uma vida feliz e decorosa para si mesmas, para seus maridos e para a sociedade em geral.
Safo pressente sua solidão a distância, e em suas palavras sente-se a imensa ternura por meio da qual, ante as moças, ela esvaziava seu íntimo desespero. Desfrutou o amor dos homens.
Conheceu o fingimento das que reconhecem o galanteio do abismo. Perguntou às estrelas qual era seu destino. Em suas noites insulares provou o sabor acre de uma feminilidade demasiado pesada para as delicadas donzelas, e intimidante para os varões acostumados à rudeza. Presa ao cerco do ensino, cumpriu o sanção do oráculo e, ainda que nunca tenha recorrido a Delfos, soube com clareza o que significava conhecer-se a si mesma.
Safo apercebeu-se de muitas coisas que não se conheciam em seu tempo. Conheceu, por exemplo, a estreiteza daquela paisagem cercada de água por todos os lados, a asfixia que ilumina a dor, a divindade que consagra a linguagem e o vigor inefável da poesia. Talvez nunca se tenha interessado pela glória, porque em seu corpo adivinhava os sinais de sua irremediável transitoriedade. Sorria diante das meninas que experimentavam novos modos de agradar, e nelas reconhecia o que nunca havia sido, o reflexo daquilo que nem tentou ser. Percebeu a ameaça que se acha contida no diferente. Imaginou a redenção do prazer. Esquecida do próprio gozo, amou o orgulho de Girino e até se inclinou para beijar-lhe os pés. Em tempos de amor,
pressentiu o crepitar da fogueira interior, e Átis ensinou-lhe a entreter a infelicidade. Como Circe, ela também explorou o abandono quando algum "Ódio", sob outra denominação, cruzou sua vida, e é de se crer que, sob o vigor de sua voz, a poetisa fosse dominada por um temor inaudito ao desconhecido.
Como era comum em outras partes da Grécia, em Lesbos gozavam de grande prestígio as instituições educativas para mulheres - que em nossos dias têm sua contraparte nos internatos para as adolescentes, ainda que estes não imitem a devoção pelas artes que era praticada na Antigüidade, nem neles exista a liberalidade com que aquela cultura mostrava seus sentimentos. Dificilmente se encontrava uma jovem de boa família que não houvesse recebido as regras e o
refinamento da perfeita mulher casada. Havia inúmeros agrupamentos religiosos denominados thiasoi, nos quais eram treinadas com especial rigor aquelas moças destinadas a se casar com os filhos da nobreza, comerciantes enriquecidos e heróis de guerra. Assimilavam princípios e tradições; desfrutavam de seleta companhia e cultivavam segredos de amizade talvez infiltrados de amores sutis, pois, em sua Ode a Afrodite, Safo pede para ser liberada de um amor feminino, enquanto em sua Ode à mulher amada, declara sua paixão por uma garota cujo olhar a comove profundamente; ao mesmo tempo, o jovem sentado a seu lado parece-lhe um deus em sua indiferença. Se tais exclamações são freqüentes em sua poesia, em passagem alguma de sua obra se encontra uma referência explícita às relações físicas entre elas.
Concentradas na aprendizagem da música e da poesia, tudo estava disposto para incorporá-las com suavidade às exigências da sociedade, que não eram nada simples. Para isso contribuíam as tradições lésbias de valorizar o companheirismo, honrar os deuses com danças e cantos e manter contatos variados com seus vizinhos, os jovens lídios, famosos por sua elegância. Resulta daí que os versos líricos de Safo sejam mais intensos que seus epitalâmios compostos para interpretação coral em ocasiões festivas; e igualmente apresentem maior força que suas canções dedicadas a homens ou a deuses.
Seus cantos festivos para casamentos gozavam de grande prestígio em função de sua radiante espontaneidade. Com poesia despedia algumas de suas discípulas, e com poesia mitigava a iniciação destas na complicada vida a dois que, desde o século VII daquela era, se completava com uma singular devoção entre o homem e o jovem ou entre a mestra e a aluna, relação esta que, apesar de refletir expressões de afeto que possam nos parecer desmedidas não implicava
necessariamente ligações sexuais. Essa forma de aliança preparava para a vida, buscando imitar uma existência ideal e apaixonada. A literatura helênica está repleta de tais exemplos, até que Platão, muitos anos depois, se encarregou de definir os termos da amizade, do amor e da ligação espiritual.
É impossível determinar exatamente o período em que as jovens permaneciam sob a tutela de Safo. As relações íntimas de ódio e amor que refletia em seus versos denotam o trânsito da puberdade à adolescência, porque era comum que o casamento fosse realizado muito antes que os noivos completassem 20 anos. As meninas constituíam sua audiência e estava previsto que deixariam seu círculo diretamente para a celebração de seus esponsais, o que torna pouco provável a suposição de que Safo fosse uma sacerdotisa rodeada de formosas jovens com as quais praticava rituais eróticos em honra de Afrodite e das Musas, como escreveu maliciosamente o poeta Anacreonte, uma geração depois.
Em seus versos de despedida, Safo celebrava os noivos comparando-os a ninfas e heróis; isso confirma que, estando a vida coletiva das jovens dos thiasoi sob a especial proteção de Afrodite, as meninas expressavam um afeto apaixonado entre si e para com a mulher que as tutelava; e Safo, nesse sentido, professava um cálido apego pelas adolescentes que, ao se casarem, deixavam de ser "jacintos nos montes" para se converterem em "flores plantadas no solo", ou seja, que a
partir do momento em que arcavam com as preocupações e dissabores da vida matrimonial, para a qual haviam sido preparadas, as donzelas perdiam seu estado anterior de pureza perfeita.
Foi assim que ela cantou ao encaminhar para as bodas uma das jovens de seu thiasos, e é assim que lemos estes versos que começavam com o louvor do noivo antes de se dirigir à noiva:

Parece-me igual aos deuses o homem
Que vejo sentado frente a ti
Ouvindo absorto tua doce voz
E o riso encantador que, a mim,
Perturbou o coração dentro do peito.
Apenas te contemplo e a voz me falta
A língua parece partir-se
E um fogo sutil recorre pele adentro;
Já nada vêem meus olhos e zumbem meus ouvidos,
Corre o suor pelo meu corpo e trêmula
Sinto-me toda; como a relva do prado
Quedo-me verde e como morta.
Porém a tudo é preciso superar...

Se pouco restou da obra de Safo, muito menos de sua biografia.
Nasceu por volta do ano 590 a.C, perto de Mitilene, capital da ilha de Lesbos, na época ocupada pelos eólios; por Heródoto sabemos que seu pai chamava-se Escamandrônimo e sua mãe Cieis, nome que daria também a sua formosíssima filha, provavelmente loura, a quem dedicou pelo menos uma canção na qual a comparou à luz de uma tocha.
Segundo a própria confissão, não era bela; Plutarco, todavia, apelidou-a a bela Safo, enquanto Platão, que muito admirava sua força poética, foi o primeiro a chamá-la Décima Musa. Ela descreveu a si mesma como uma mulher pequena, morena e não muito graciosa. Oscilava entre
sentimentos doces e amargos, e não ocultou os transtornos que, em determinadas ocasiões, lhe provocava Eros. De fato, sua lenda começou a se difundir graças aos extremos que ora deixavam-na repassada de dor, a ponto de desejar a morte por causa de um abandono, ora
enchiam-na de um gozo exagerado. Apaixonada, sensual e inclinada a certa melancolia, a qual sabia expressar com singeleza, Safo permaneceu, contudo, estóica por disciplina, e tão brilhante quanto extraordinariamente sensível.
Perdeu seu pai quando tinha 6 anos e manteve ligações muito estreitas com seus três irmãos, a quem mencionou várias vezes em seus cantos. Orgulhosa do fato de um deles [Lárico], devido à sua elegância e beleza, ter sido escolhido para servir o vinho nos banquetes cerimoniais, testemunhou em seus versos a importância que representava para um jovem da cidade receber uma distinção como esta. Com relação a Cáraxo, ao contrário, descreveu a vergonha que trouxera à família quando se apaixonou por uma hetera grega chamada Dórica, que conheceu em uma de suas navegações a Naucrátis, na costa egípcia, onde comerciava com o vinho de Lesbos. Por ela, esta amante misteriosa, Cáraxo sacrificou seus bens e incorreu em desvarios tais que ao descrever o acontecimento, Heródoto a confundiu com Rodópis, uma cortesã de origem trácia que foi durante algum tempo escrava do comerciante Jadmon, o homem sâmio de Efestópolis,
e companheira de servidão do fabulista Esopo. Graças a seus encantos, Rodópis acumulou grandes riquezas, e com a décima parte de sua fortuna mandou erigir a si mesma um monumento em Delfos. Mas seria demasiado forçado vinculá-la a Cáraxo.
Safo casou-se com um próspero comerciante da ilha de Andros, ainda que desse matrimônio só tenham restado os versos dedicados a Cleis, "formosa como flores de ouro", por quem sua mãe "daria a Lídia inteira". Morto ou abandonado, seu marido Quérquilas se apagou de sua biografia. Ainda jovem Safo partiu para o exílio na Sicília, talvez por causa de distúrbios políticos ocorridos em Lesbos, e lá lhe ergueram um monumento no século IV a.C, o qual foi roubado muito depois por Verres, um governador romano conhecido por sua cobiça. Safo regressou mais tarde para Mitilene, onde permaneceu pelo resto de sua vida. Os interesses de Safo não se concentravam em questões de família, mas eram tomados pelas tarefas da escola e com o ofício de tutelar as jovens, que considerava um ministério sagrado. De fato, a poesia orientava e refinava suas vidas. Foi com esse espírito que escreveu e conviveu entre as meninas que formou e amou, e com quem sofreu e se alegrou. Assegurou que a atividade das Musas favorecia o triunfo da sensibilidade, da ordem e da graça sobre a torpeza, a desordem, o acaso e a vulgaridade; por isso nunca devia se infiltrar em seu círculo um sentimento de luto; ao contrário, quando perdiam um ser querido, as jovens deveriam cultivar o silêncio, conforme cantara em seus versos a Cleis quando esta chorou pelo desaparecimento de alguém que lhe era próximo.
Safo escreveu no dialeto eólio ou em lésbio vulgar, inventando tanto os harmoniosos versos sáficos como as estrofes eólicas, espécie de harmonia para canto acompanhado por um instrumento chamado pectis. Dos nove livros que escreveu, só perduraram dois poemas
completos: a Ode à mulher amada, que foi compilado por Longino em seu Tratado do sublime e traduzido para o latim por Catulo em seu poema; e a Ode a Afrodite, resgatado por Dionísio de Halicarnasso. Os fragmentos de muitos outros poemas que conhecemos confirmam que se cumpriu sua esperança de ser recordada através dos séculos não pelo clima de escândalo que a envolve, mas por sua reputação entre os poetas de maior importância da lírica grega.
Desconhecem-se as datas de seu nascimento e de sua morte. Um célebre relato, talvez proveniente de uma comédia grega, afirma que Safo se apaixonou por um certo Faon. Quando este a desprezou, a poetisa precipitou-se do rochedo de Lêucade, uma ilha situada na costa oeste
da Grécia.
Essa mulher, diria mais tarde Marguerite Yourcenar, amargurada por todas as lágrimas que, fortalecida por sua coragem, não se permitiu nunca derramar, percebeu que a todas as suas amigas não podia oferecer mais que um acariciante desamparo.

Do livro Mulheres, Mitos e Deusas - de Martha Robles

Beijos sonolentos... rsrsr...
Babi

Um comentário:

Natan Brith disse...

Muito bom seu post!!!!! adorei muito interssante... como sempre arrasando!!!! Te amoooo